Tuesday, January 20, 2009

Tributo

Com a alma vestida de negro chego à tua casa. Aquela que foi a minha casa em tantas tardes soalheiras em que me cantavas modas improvisadas qua saltavam da tua boca com tão poucos dentes já no final.
Lembro-me do teu sorriso, do teu olhar prescutante quando ou os outros inventávamos uma desculpa para termos chegado atrasados para o almoço... Como riamos quando sorvias a sopa!
Gosto de recordar as tardes frias que cheiravam a lenha queimada, em que assavas chouriço para nós e nos contavas a tua vida de homem do campo que lutou para sustentar uma família inteira enquanto viviam numa malhada de palha... Com uma televisão!
Via-te cada vez mais encurvado, com cada vez menos visão... “Onde está o comprimido?”
Mas o sorriso com que nos acolhias, a disposição com que nos brindavas... Essa nunca desapareceu. Nunca!
Entro na casa de três gerações e não há luz. Não há o teu pigarrear ao fundo da escada a anunciar a tua chegada [aguço o ouvido para ver se o oiço]. Não há risos. Apenas interrogações.
Revolta.
Foste-te embora e levaste as palavras contigo.
Mas eu não questiono. Quiseste. Fizeste.
Lembro-te como és. Da tua essência. Estás vivo em mim e em todos os espíritos que alumiaste.

Friday, August 15, 2008

Labirinto ladrilhado

Hoje enquanto descia um ladrilhado labiríntico ridículo dei por mim a pensar que gostaria de ser uma antítese.

Naquele momento quis ter colado ao meu corpo um vestido preto , bem curto, que deixasse entrever a figura esquálida que não tenho e que denunciasse a tonalidade pálida e macilez da minha pele , em baixo mostraria as ligas das meias pretas que terminavam em sapatos com salto agulha de verniz roxo.

Sem óculos de sol, os meus olhos perdidos, esborratados de preto olhariam para as faces chocadas a passar e o batôn vermelho disperso pelos lábios e pela área envolvente ,receberia com prazer o falso conforto de um cigarro.

Queria ser uma visão da decadência e chocar criancinhas e paizinhos, na ilusão de que sou alguém especial, diferente, mesmo provocando reacções adversas à minha figura.
Mas era feliz.

Naquele momento quis mostrar ao mundo que não quero ser convencional, que não quero dizer que tenho valores, mas tê-los realmente. Quis chocar, para mostrar que não faço parte deles.

Cheguei a casa, fiz festas ao cão, beijei a mãe e a normalidade quis apossar-se de mim mas aquela heroína decadente permanecia na minha mente afastando qualquer pensamento sorumbático, lembrando-me que há uma parte de mim que permanece intacta: a ferocidade de uma alma que se quer fazer ouvir. Por acções ou palavras.

Monday, March 10, 2008

Coisas...

Luz amarela, ténue, penetra nas fibras dos lençóis.

Sensações guardadas na derme há pouco despida, desarmada, arranhada, lambida.

Mãos que estudam corpos como a um mapa. Quase que os sabem de cor. E os olhos, os olhos também os sabem.

O corpo amolecido, dormente e enternecido deleita-se com os vapores exalados pelos amantes. Encostam-se. Querem absorver-se porque são tão perfeitos.

Soltam-se palavras e sorrisos, mas os lábios mexem-se casualmente. O que se diz é como se olha, como se respira. Tocam-se as costas, as coxas, os seios (...) acalentando a carne, sossegando a respiração arquejante.

Palavras mais espaçadas, carícias mais lânguidas, temperatura mais suave... Sussurros... Suspiros...


A luz apaga-se. Fica suspensa no ar toda a lascívia, sensualidade... A ternura que percedeu o momento.

Wednesday, February 06, 2008

Poemário.Âmago.Paixão.

A propósito de paixão, âmago, violência... O erotismo:


Horas rubras

Horas profundas, lentas e caladas
Feitas de beijos sensuais e ardentes,
De noites de volúpia, noites quentes
Onde há risos de virgens desmaiadas…

Ouço as olaias rindo desgrenhadas…
Tombam astros em fogo, astros dementes.
E do luar os beijos languescentes
São pedaços de prata p'las estradas…

Os meus lábios são brancos como lagos…
Os meus braços são leves como afagos,
Vestiu-os o luar de sedas puras…

Sou chama e neve branca misteriosa…
E sou talvez, na noite voluptuosa,
Ó meu Poeta, o beijo que procuras!

Florbela Espanca


Grito

Cedros, abetos,pinheiros novos.~
O que há no tecto
do céu deserto,
além do grito?
Tudo que e' nosso.
São os teus olhos
desmesurados,lagos enormes,
mas concentrados
nos meus sentidos.

Tudo o que é nosso
é excessivo.
E a minha boca,
de tão rasgada,
corre-te o corpo
de pólo a pólo,
desfaz-te o colo
de espádua a espádua,
são os teus olhos,
depois o grito.

Cedros, abetos,
pinheiros novos.
É o regresso.
É no silêncio
de outro extremo
desta cidade
a tua casa.
É no teu quarto
de novo o grito.

E mais nocturna
do que nunca
a envergaduradas nossas asas.
Punhal de vento,rosa de espuma:
morre o desejo,
nasce a ternura.
Mas que silêncio
na tua casa

David Mourão Ferreira


Gozo e dor

Se estou contente, querida,
Com esta imensa ternura
De que me enche o teu amor?
Não. Ai não; falta-me a vida;
Sucumbe-me a alma à ventura:
O excesso de gozo é dor.

Dói-me alma, sim; e a tristeza
Vaga, inerte e sem motivo,
No coração me poisou.
Absorto em tua beleza,
Não sei se morro ou se vivo,
Porque a vida me parou.

É que não há ser bastante
Para este gozar sem fim
Que me inunda o coração.
Tremo dele, e delirante
Sinto que se exaure em mim
Ou a vida ou a razão.

Almeida Garrett

Wednesday, September 19, 2007

Ser...

Às vezes acordo e sinto o meu Corpo demasiadamente largo para a minha Alma. Como se ela flutuasse lá dentro sem fio que a prenda, sem nada que a agarre...

Então anda por ali, perdida e oprimida num corpo com nome que se movimenta automaticamente.Os gestos repetidos dia após dia.

E ela castiga-o (a Alma é mulher ): tenta escapar, olhar para ele de longe e ridicularizá-lo. "Que coisa tão obscena que és!" diria ela. "Olha só para ti, cheio de carne, nervos, sangue... Vou fugir ouviste?!Vou desassociar-me de ti, ó matéria ignóbil! Estás a ouvir?!"

O Corpo, esvaziado mira-la-ia com olhos baços, sem emoção e não responderia.

Perante o seu Silêncio a Alma afastar-se-ia. Perder-se-ia no etéreo.

Não muito tempo depois começaria a definhar. Faltar-lhe-ia ver, ouvir,cheirar,saborear,tocar... É algo por si, mas não é tudo. Quer sentir e fazer-se grande, cescer muito e mais.

Com mãos de nada acaricia o Corpo e diz condescendente: "Tens feito um bom tabalho,tu,até aqui...Agora vá! Beija-o que eu quero ajustar-me a ti..."

Com os olhos brilhantes e sorridentes ele avança. E sente.

O verbo

Rasga-me por favor!
Rasga-me e tira de mim este sangue que corre sem ordem, sem permissão!
Rasga-me e faz de mim um corpo sem vontade, sem emoção, faz-me nada!
Rasga-me e tira-me a laringe porque tenho choro lá preso!
Faz das minhas palavras música .Porque o som não tem limitações!
SINTO-ME UMA PALAVRA!

Limitada, sem emoção, dormente, sem surpresas, nem vontade...

Mas a mente dilui-se. Mistura obrigações, vontades, necessidades, futilidades. Dilui-se e eu tenho medo do vazio.

Sentir...

Vento, chuva, sons,clarões.

E eu lá fora encharcada.Parada.Esmagada.

Cheiro, oiço, deslizo com a água por entre as pedras da calçada e vou parar a uns pés desconhecidos que pertencem a alguém que reclama dias mais luminosos e suaves.

- Estúpido...- digo eu numa voz escorrida. Não me tires estes dias violentos que me enchem!

Enchem-me de revolta e de sentidos.

São dias que me tocam com paixão para de seguida me arrebatarem...

Sugo a energia furiosa dos transeuntes, mais fluida com a água.

Paro de novo.

Viro o rosto desmparado para o céu revoltado.

O queres, Tu, que pelos Teus maléficos mecanismos me fizeste?

Tu que apenas me criaste para ser mais um átomo do Teu ser egoísta. Mais um terminamento nervoso para sentires!

E de tanto me fazeres sentir, adormeci a executar o meu papel neste mundo...

Sinto a chuva....

Encharcada deslizo pelas pedras da calçada...

Friday, February 02, 2007

Ode ao violino

Liberta-me!
Tu não percebes... O cobertor que me pões em cima é quente demais, escuro demais!
Aos poucos sufoco com a minha própria respiração, que deixa de me entrar nos pulmões, colando-se à minha pele.
Dos meus olhos caem lágrimas de Sal e Desespero.
Fecho os olhos e vejo-o. Furioso a rasgar o ar com o som que produz. Porque ele é apenas o moldador que dá vida áquela sonoridade!
Começam a cair-lhe gotas pelas têmporas, pelas pestanas, pelas unhas e pelos olhos lágrimas de Sal e Rejúbilo.
Sinto-me triste , zangada, furiosa, embrutacida. Risco furiosamente uma folha de papel porque quero chorar assim. Quero que as minhas palavras rasgem as mentes e o ar.
Mas não.. Tal como ele, atrás da porta de vidro, também ningém irá ouvir o som das minhas letras porque a fúria que empregamos ao nosso amor nunca é ouvida, tão pouco compreendida.
E assim me tapaste com um cobertor escuro e sufocante.
Não te perdoo, porque as minhas palavras fugiram da tua alma desesperada.

Sunday, May 28, 2006

Loucura Invisível

Atrasada para o meu destino duas horas, entro no comboio e vejo José.
José com a sua estatura baixa, encurvada, quase calvo, de pasta na mão e olhar enlouqucido. Mas era uma loucura invisível aos olhos dos lúcidos. Ali só eu compreendi.
Compreendi o José que ia para o trabalho e quando lá chega todos param de falar e olham para ele com condescendência.
Estoicamente prossegue o seu caminho para a sala.Debita um chorrilho de palavras que deixara de compreender perante o olhar lúcido, inocente e aborrecido dos seus alunos.
Toca a campainha a anunciar um dia terminado.
Apanha o comboio de regresso e chega ao sítio que deixara de ser a sua casa há três semanas. Roda a chave, abre a porta, entra, dirige-se à casa de banho, liga o chuveiro, despe-se, toma um duche, veste-se e maquinalmente dirige-se ao Quarto Cor-De-Rosa. Deita-se na Cama Cor-De-Rosa e chora até adormecer. Amanhã é mais um dia.

Um dia a minha bisavó disse que quem perde um filho só não enlouquece porque Deus não deixa...